
Irmandade da Caridade
De acordo com o terceiro capítulo da obra de Beatriz Kushnir, ”Baile de Máscaras”, num primeiro momento, em 1906 é criada uma organização associativa para auto proteção e socialização de mulheres e homens que participavam do comércio e da prática da prostituição estrangeira no Rio de Janeiro-”as polacas“ onde ficaram conhecidas dos freqüentadores do Mangue e da Lapa da belle époque carioca.
Composta majoritariamente feminina, seus objetivos neste período eram de criar condições de assistência religiosa, educacional e médica a suas associadas. A participação masculina ficava somente a encargo da escola e da sinagoga. Preocupadas com a preservação de sua vida espiritual e com a educação de seus filhos, essas mulheres reelaboraram, na pátria imigrada, suas referências de identidade. A existência de crianças e da criação de escola desmistifica o mito da prostituição em que as mulheres eram inférteis ou mesmo negadoras da idéia de maternidade.
Para ser membro da associação, nesse período, requeria-se a apresentação feita por um sócio antigo e em pleno gozo de seus direitos; professar a religião judaica; estar em perfeita saúde; e não ser inválido, pois a entidade vivia das mensalidades de seus associados, que precisavam estar saudáveis para desempenhar seus trabalhos.
Num segundo momento da entidade,em 1914,houve uma reorganização da associação, com um novo estatuto, devido talvez à redução do número de mulheres associadas, já que o período era instável proporcionado pela 1ª Guerra Mundial e pela dificuldade em se sair da Europa. Sendo assim houve um decréscimo da chegada de novos imigrantes e o contingente de prostitutas estrangeiras era muito móvel. Mas com o fim da guerra e suas conseqüências no continente europeu,torna-se a chegar uma nova leva de prostitutas judias no Brasil.
A segunda fase da ABFRI foi marcada pela divisão em duas esferas: uma das beneficências, comandada pela ala feminina que cuidavam dos enterros e aos socorros hospitalares das mulheres e outra da administração masculina que se encarregavam de gerenciar o patrimônio e autorizar despesas. Percebe-se neste momento a possibilidade de viver em um coletivo e por um coletivo de homens e mulheres, sendo ambos contribuintes.
Realizavam-se eleições, nos quais sós homens podiam ser eleitos para cargos administrativos devido a um sistema ideológico, de que a associação reflete um modelo familiar e assim se expõem e afirmam valores de superioridade masculina e o de núcleo familiar que é extremamente importante, pois é ele que constitui a base de identidade do grupo, uma vez que os imigrantes entendem essa atitude como uma forma de preservar sua originalidade. Por outro lado, a associação reforça uma visão de época em que a relação cáften/prostituta era vista a partir da força e da coerção. A autora exemplifica que nesse período existiam três tipos de estereótipos de cáftens ,sendo eles o apache,o sentimental e o judeu ,sendo este último um negociante ,frio e calculista que opera com a razão do lucro.
Em 1916, a ABFRI inaugura o Cemitério Israelita de Inhaúma representando e afirmando o objetivo de uma sociedade dessa natureza: a manutenção de uma identidade étnico-religiosa, a despeito das relações com a comunidade judaica.
A inauguração foi anunciada como uma verdadeira crônica policial, narrando o bizarro, a notícia misturava em um mesmo caldeirão todas as referências usualmente feitas ao fenômeno do tráfico de escravas brancas a atuação de parte da comunidade judaica nessa área. Sendo assim fica mais claro o porquê da construção de uma vida comunitária e da criação da Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita-seu cemitério e sua sinagoga, pilares de uma vida espiritual, religiosa e social. Esta população, sendo uma parcela de condenados ao esquecimento social, os sócios da ABFRI, longe de se autocondenarem, buscaram na vivência comunal religiosa a identidade social pra continuar a sua vivência.
Com uma atitude de exclusão, frente à questão da prostituição e do tráfico de brancas, que envolvia alguns de seus membros, a comunidade judaica carioca preocupava-se em “salvar” as moças alertando-as. Mas sabe-se que o seu resultado foi quase nulo. Então a estratégia utilizada foi de demarcar a divisão do grupo e reafirmar a especificidade de cada lado, baseando em valores morais e socialmente reconhecidos, sendo para muitos como o mais natural diante tais circunstâncias.
Novas mudanças nos estatutos da ABFRT acontecem em 1925. Preocupados em se apresentar como uma comunidade independente e auto-suficiente elabora-se um novo estatuto que prevê que o patrimônio deve ser aplicado na aquisição de um asilo, um hospital e na educação dos filhos dos associados, sendo que nestas novas mudanças incluem-se novas categorias de sócios, como contribuintes; remido; benemérito e honorário.
Cada associado tinha uma ficha de matrícula, sendo que um caso interessante é de um dos sócios, chamado Weinstein, acusado de estrupo e maus tratos contra sua esposa. Quando esta é interrogada em razão de sua tentativa de suicídio,sua esposa, Fany, relata também a tentativa de seu marido cafetiná-la.
Weinstein, mesmo com provas materiais da sua violência, é inocentado do crime. A autora associa isso a sua posição não somente dentro da ABFRI, que possibilitava uma vivência comunal de cunho religioso, mas também de possibilitar do mesmo ser maçon. É compreensível que os laços que regiam a associação são de afetibilidade e solidariedade, proporcionada sempre uma reestruturação destes laços.
Um marco na história da associação é da 1ª Diretoria de Associados do Sexo Feminino eleita e empossada. Segundo a articulista ,esta mudança pode ser aceita por dois fatores,mudanças dentro do quadro presidencial,devido a muitas mortes ou reflexos da campanha anti-cafetismo ocorrida na Argentina.
A autora apresenta as dificuldades financeiras que a associação passou em meados dos anos 40 e que refletem marcas sempre presentes nessa associação, como o seu caráter fundamental de eterno refazer, reestruturar e recomeçar. O declínio da ABFRI começa a dar sinais claros em meados dos anos 50. Importante relato é ministrado pelo Senhor O contador da associação, que demonstra uma intensa tentativa de construir uma memória através dos dias de festas religiosas e sepultamentos. Num discurso marcado pela necessidade de preservar uma visão positiva,o Senhor O.,afirma que nunca soube que aquela era uma sociedade de prostitutas,que para ele ,tudo corria dentro de uma normalidade por não saber da vida dos respectivos sócios fora do âmbito da associação.
Devido a um quadro de doenças ,em dezembro de 1961,é realiza-se um assembléia para escolher uma substituta para a então presidente Angelina Schafran. As sócias remanescentes viram a seguir o declínio e queda da ABFRI, pela falta de recursos.
Assim sendo, no final do terceiro capítulo, com o subtítulo “Quando vemos os rostos”, a autora volta-se à vida das “polacas”. Percebe-se que, apesar de não serem todas moças inocentes, que entraram para o mundo da prostituição sendo enganadas, como mostra a autora em outros trechos do livro, têm todas a miséria e a perseguição religiosa como marca comum em suas trajetórias.
Beatriz relata que ao fim da vida, não era incomum estas mulheres ocuparem-se de outras atividades como a venda de bilhetes de loteria, por exemplo. Quanto à AFBRI, nota-se que serviu para atender um grupo específico em momento determinado da história, já que não houve a perpetuação da Associação, que foi demolida, enquanto o cemitério foi abandonado.
104 fichas policiais da Delegacia de Costumes do Rio de Janeiro, preenchidas entre os anos 50 e 70, mostram as origens da prostitutas, francesas em sua maioria. O delegado auxiliar da delegacia conta sobre um episódio em que prometeu a uma mulher que se tornara prostituta por ter sido expulsa de casa, que rasgaria sua ficha se ela mudasse de vida. Sendo que tal ato repetiu-se outras vezes. Nota-se que a ficha carregava o estigma que perseguia estas mulheres, além de servir como controle de suas vidas.
As fotos e as histórias das fichas revelam muito da vida destas mulheres. Algumas mais bonitas outras aparentando mais idade do que realmente tinham. Várias começaram a se prostituir porque ficaram viúvas, ou porque se separaram, enquanto outras deixaram esta vida porque se casaram ou começaram a trabalhar como vendedoras. Muitas, por serem analfabetas e sem preparo para ingressas no mercado de trabalho, encontravam na prostituição uma saída, que as “mantinha” até idade avançada, em muitos casos. O tom desastroso da história destas mulheres inspirou artistas e escritores. Eram histórias de vida semelhantes, porém, a singularidade de cada história, também fala alto.
O papel da ABFRI era de refazer laços e tornar familiar o mundo hostil. Estas mulheres precisavam reconstruir seus mundos e vivenciar o coletivo. Rebecca Freedman, ou Becca, como era conhecida, dedicou parte de sua vida para que isto acontecesse. Ela foi eleita presidente da AFBRI em 1966. Rebecca, que era analfabeta, chegou ao Brasil em 1916, e é lembrada como uma mulher lúcida, atenta às questões contemporâneas, e também bastante religiosa. Rebecca não foi substituída ao fim de sua gestão de 4 anos, já que a Associação se exauriu. Segundo Senhor O, que trabalhou na AFBRI, não houve uma reunião para acabar com a Associação, simplesmente não houve mais reuniões porque não havia arrecadação. Esperou-se até a próxima reunião que nunca chegou.
Rebecca morreu aos 103 anos, em 1984, no subúrbio de Ramos. Foi enterrada no cemitério Comunal do Caju, pala entidade israelita Sociedade Cemitério Comunal, qual passou a cuidar do Cemitério Israelita de Inhaúma. O abandono do cemitério, o fim da AFBRI (que ajudou a preservar a identidade cultural e religiosa destas mulheres) e da vida de dona Becca, nos levam a refletir sobre estas mulheres. Muitas são relembradas por seus descendentes com vergonha. Segundo a autora, esta situação estava mudando na época em que o livro era feito, e alguns descendentes declaravam não sentir nenhum constrangimento.
Referência:
KUSHNIR, Beatriz. Baile de Máscaras.Mulheres Judias e Prostituição:As Polacas e suas associações de Ajuda Mútua.Rio de Janeiro:Imago Editora,1996.
Postado por Mr. John
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